O ex-primeiro-ministro, António Costa, foi apanhado em cerca de 50 escutas da Operação Influencer, apesar de nunca ter sido o alvo direto das intersecções telefónicas.
Centrada, inicialmente, em alegados crimes relacionados com os projetos de minas de lítio em Trás-os-Montes, de uma central de produção de hidrogénio verde (H2 Sines) e do Centro de Dados de Sines, o inquérito passou a ter António Costa debaixo do radar do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP). Iniciou-se com uma escuta entre Costa e João Pedro Matos Fernandes, então ministro do Ambiente, onde combinaram tomar um café para discutir a “Avaliação Ambiental Estratégica”.
A presença do primeiro-ministro nas escutas da operação desencadeou um mecanismo jurídico, obrigando o Ministério Público (MP) a enviar as escutas para validação pelo presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ).
O juiz conselheiro Joaquim Piçarra, então presidente do STJ, não hesitou em enviar um duro recado ao Ministério Público. Segundo a revista “Sábado”, o magistrado salientou que “as interseções realizadas no âmbito do inquérito criminal são apenas um meio de prova de factos integrantes de ilícitos criminais e não meio de escrutínio da atividade governativa”, revela a revista.
Juiz alertou para riscos
Piçarra acrescentou que as escutas não podem servir para “escancarar a ação governativa e os contactos institucionais estabelecidos por primeiro-ministro e os demais membros do seu governo”.
Inicialmente, o juiz do Supremo determinou a destruição das escutas, por considerar que abordavam “matéria atinente à governação”, logo “a coberto de segredo”.
A 2 de dezembro de 2020, o MP determinou que os suportes digitais ficassem “guardados no cofre” do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP).
“Na gaveta até às autárquicas”
Apesar da controvérsia, as comunicações continuaram a acumular-se nos autos, expondo detalhes da vida governativa e interna do PS.
Assim, numa conversa de fevereiro de 2021, António Costa sugeriu a Matos Fernandes que colocasse os PROT (Plano de Regionalização e Ordenamento do Território) “na gaveta até às autárquicas”.
No mês seguinte, o então primeiro-ministro manifestou preocupação à presidente da Câmara de Matosinhos, Luísa Salgueiro, devido à notícia que dera ao JN sobre os efeitos poluentes da refinaria de lítio, considerando-a “absurda, ainda que verdadeira”, e referindo que “não pode ser é a presidente da câmara vir dizer que aquilo é mau, senão os outros não querem”.
Carneiro e Pizarro escutados
Outras figuras socialistas apareceram nas escutas em busca de favores. Manuel Pizarro, o ex-ministro e último candidato do PS à Câmara do Porto, pediu a Matos Fernandes para “fazer alguma coisa, em Amarante, para valorizar Américo Paulo Ribeiro”.
Mais tarde, o atual secretário-geral do PS, José Luís Carneiro, solicitou um emprego para Nelson Brito, ex-deputado do PS, “a sul do Tejo”.
Diálogos sobre a vida interna do PS também surgiram nas escutas, como quando Costa ligou a João Galamba a questioná-lo se não ficava “muito ofendido” por ser colocado na Comissão Política e não no Secretariado do PS, para “fazer uma renovação parcial”.
António Costa surgiu ainda numa conversa cujo conteúdo remete para uma ação cível contra Carlos Costa, ex-governador do Banco de Portugal. O resumo refere que Costa o contactou dizendo que “não se pode tratar mal a filha do Presidente de um país amigo”.
Estranhas ao processo
O recurso sobre a destruição das escutas acabou por ser encaminhado para a 3ª secção do STJ. O MP argumentou, em dezembro de 2020, que as escutas deveriam ser preservadas para permitir que o alvo da investigação (um dos intervenientes na conversa) delas tomasse conhecimento e as pudesse usar em sua defesa.
Em acórdão de 16 de junho de 2021, os juízes conselheiros deram razão ao Ministério Público, sublinhando que “ainda que se entendesse que as conversações em causa” eram “manifestamente estranhas ao processo – como realmente algumas são”, não deveriam destruir-se imediatamente por não encaixarem nas regras do Código do Processo Penal.
Ao longo do tempo, o rol de “escutados” no processo aumentou significativamente, incluindo figuras como Diogo Lacerda Machado, Afonso Salema, Nuno Lacasta, Vítor Escária, e o ex-presidente da autarquia de Sines, Nuno Mascarenhas.
Advogados pedem esclarecimentos ao MP
Em comunicado, os advogados João Lima Cluny e Diogo Serrano pediram ao MP, “enquanto instituição que atua num Estado de Direito Democrático”, que esclareça porque libertaram “o conteúdo de determinados processos-crime que ainda se encontram em investigação, e ao qual não é dado acesso a quem mais neles tem legítimo interesse”.
Além disso, os representantes do antigo primeiro-ministro referem que as 50 escutas “nada relevam para as alegadas e intermináveis investigações que estão a ser levadas a cabo”, segundo veredicto do Supremo Tribunal de Justiça.
“O que mais esta notícia demonstra é que, como já dissemos, quando, em 7 de novembro de 2023, foi publicado o comunicado pelo Gabinete de Imprensa da Procuradoria-Geral da República, nada, mas rigorosamente nada, havia a respeito do nosso constituinte”, destacam, rematando que “pode ser interessante escutar os membros do Governo sobre a ação política, mas longe vão os tempos em que escutar para saber o que os outros pensam era uma prática com que tínhamos de viver”.









